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Receita caseira com cebola acaba com o “vício do álcool”?

27 Dez 2023 - 08:00
falso

Receita caseira com cebola acaba com o “vício do álcool”?

Circula no TikTok uma receita caseira que promete acabar com o “vício do álcool”. O método passa por misturar, num frasco, uma cerveja com metade de uma cebola descascada.

Segundo os criadores de conteúdo, a mistura deve ser deixada no frigorífico durante três dias, após os quais se deve retirar a cebola do preparado e dar a restante bebida à pessoa com alcoolismo. 

Alega-se ainda que, além de a bebida não cheirar a cebola, vai permitir que a pessoa deixe de beber cerveja de forma gradual. A cebola é utilizada, porque, supostamente, é “uma aliada no combate ao vício do álcool”, defendem os utilizadores do TikTok. Esta técnica funciona mesmo? 

É verdade que esta receita caseira de cebola e cerveja trata o “vício do álcool”?

Em declarações ao Viral, João Marques, psiquiatra e presidente da Sociedade Portuguesa de Alcoologia, adianta que “não existe nenhuma evidência que corrobore a utilização de algum alimento ou nutriente para o tratamento da dependência alcoólica”.

De facto, “há muito tempo que, culturalmente, procuramos soluções para as dependências e, sobretudo, para a dependência das bebidas alcoólicas”, expõe. No entanto, “a dependência de uma substância, neste caso do álcool, leva, mesmo, a uma modificação química cerebral”, elucida João Marques.

Nesse contexto, é preciso tratar a condição “com algumas substâncias que se conhece, para aliviar o sofrimento da ausência da substância”. Por isso, o tratamento nunca pode passar “por nenhum alimento ou nutriente”, mas, sim, “por um tratamento farmacológico específico”, sustenta. 

Noutro plano, aponta, “é verdade que, para tratar uma dependência, precisamos de estar motivados e, às vezes, estes mitos culturais ajudam-nos a motivar a reduzir e a deixar” o consumo de álcool

Até porque, durante o “processo da dependência alcoólica”, há várias fases. No início, não há dependência física, ou seja, há um “craving”, a pessoa tem “vontade de beber mais um copo”, mas até pode conseguir controlar-se. 

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Nessa primeira fase, explica João Marques, “com a intensificação da motivação”, a pessoa até pode conseguir “deixar de beber ou alargar o período em que não bebe”.

O problema é que, “à medida que se usa o álcool”, não se percebe a relação que se vai estabelecendo. Segundo o psiquiatra, “a questão do limite e da dependência acaba por ser difícil para o próprio perceber”, havendo, por norma, “uma negação grande” do problema.

É comum pessoas com adição ao álcool proferirem frases como: “não é um problema” e “quando quiser, eu deixo”. Só que, entretanto, o consumo vai aumentando e a pessoa “vai bebendo, todos os dias, cada vez quantidades maiores”. 

Como esclarece o médico, isto “tem a ver com a própria substância que, ao início, nos faz sentir relaxados e dá-nos uma sensação de bem-estar”. No entanto, vai-se “criando uma ligação muito forte e, a certa altura, essa ligação é muito mais forte que o prazer que a substância dá”. 

Chega-se, então, ao ponto da dependência física, em que a pessoa fica “fisicamente mal”, “treme”, “vomita”, “quando deixa de beber”. Aí, não há alternativa sem ser “fazer um tratamento específico para não ter os sintomas de privação”. 

Aliás, a privação do álcool, para uma pessoa dependente fisicamente, é a única que “pode levar à morte”, ao contrário do que acontece nas “outras dependências”, alerta. 

Assim, esclarece, “alguém que está dependente fisicamente do álcool” e “escolhe esse método de cerveja com cebola” pode “passar por uma situação muito complicada de risco de vida”, conclui.

Qual o tratamento para o alcoolismo?

Na perspetiva de João Marques, o tratamento da dependência alcoólica ou dos problemas de uso de álcool deve ser feito “em consultas especializadas com técnicos que se dedicam ao tratamento de dependências”. De modo geral, o tratamento divide-se em dois ramos:

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1 – Medicação

O presidente da Sociedade Portuguesa de Alcoologia explica que “existem diversos medicamentos com efeitos específicos para situações específicas”. Alguns fármacos “ajudam a controlar o craving (a vontade de beber)”, outros “ajudam a controlar a quantidade de bebida que se bebe”. 

Além disso, ainda há medicamentos que tiram a vontade de beber álcool. Ou seja, “se a pessoa os tomar, nunca mais bebe, porque fica tão enjoada e maldisposta, que não consegue beber mais”, clarifica.

2 – Psicoterapia

Além do tratamento farmacológico, o tratamento psicoterapêutico também é “muito importante”, salienta João Marques. A psicoterapia leva, num primeiro plano, ao “reconhecimento do problema”. Na visão do psiquiatra, “se a pessoa não reconhecer que tem um problema, dificilmente vai deixar de beber”. 

Depois, através deste acompanhamento, o doente pode “trabalhar a motivação”, de modo a “arranjar uma estratégia para ir deixando o uso do álcool”, acrescenta.

Quais as consequências do consumo excessivo de álcool para a saúde?

Segundo João Marques, as consequências do consumo de álcool em excesso “são muito relevantes” e “cada vez mais conhecidas”. 

Há algum tempo, refere o especialista, “identificavam-se benefícios no consumo do álcool e até em grandes quantidades, sobretudo de vinho”. Hoje, sabe-se que “mesmo uma pequena quantidade de álcool não faz bem à saúde”, argumenta. 

O médico adianta que “estão identificadas, neste momento, mais de 300 doenças físicas com uma relação direta com o consumo de álcool”, tais como “hipertensão arterial”, “doenças cardiovasculares”, “AVC”, “diabetes mellitus”. 

Nos últimos tempos, um dos grupos mais estudados e que levanta mais preocupações neste sentido é o das “doenças neoplásicas”. Segundo João Marques, tem-se mostrado uma correlação entre o álcool e “o aumento da probabilidade de desenvolver doenças neoplásicas, os cancros”, nomeadamente “cancro do estômago, intestinos, pâncreas, cavidade oral e da mama” (ver aqui e aqui).

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Para mais, termina, “a taxa de suicídios é alta nos dependentes alcoólicos” e há cada vez mais diagnósticos de “depressão” e de “ansiedade” em pessoas com problemas de uso de álcool.

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27 Dez 2023 - 08:00

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